sexta-feira, 28 de março de 2008

O amor a bordo de uma diligência frívola descendo a ladeira


Um trajeto longo. Pessoas cheias de teia de aranha. O ar, quase sólido, imóvel, entre um teto esquecido e um chão de areia movediça. O motorista com o volante na mão, indeciso, pensativo, indefeso, diante das bifurcações das ruas e da vida. A filha doente à espera. A mulher desempregada e triste. Despontamos na esquina onde uma cantora chora, com o microfone na mão. Ninguém ouve. Aqui, um bêbado digita o vento num computador invisível. Um casal mudo. Uma aglomeração falante saída dos pátios dos colégios, entupindo o corredor. Uma dona-de-casa tentando equilibrar-se no centro de si mesma, lendo revista. Eu, sentado no trecho menos populoso da paisagem, ouvindo música e muito distante dali. Meus pés ritmados dançam sozinhos. Fotografias atrás de vidros, vendendo fantasmas e sombras. Um pôr-do-sol externo, um anúncio de fim de festa, a minha imagem refletida no vidro da janela e as influências das luzes amarelas percorrendo as faces, embrutecidas de excesso de caráter. Uma correnteza de mundos diante dos meus olhos. E os metais do Bloco do Eu Sozinho expandindo os alicerces do meu ouvido. Então, subitamente, um germinar, uma chegada. Você pedindo passagem. Você até mim. Você no mesmo terreno que eu, sua estadia no meu sítio deserto. Você lateralmente linda, cotovelos gelados de ar condicionado. Joelhos calmos descansando ao lado dos meus. Suas compras misturadas aos meus livros. Aquele acontecimento que se torna feito memorável e glorioso no segundo seguinte. Aquele momento que já se vive como memória épica enquanto acontece. Eu poderia ser o locutor do meu próprio jogo ou o narrador distante do meu mergulho desesperado. Era só em você que eu repousava meus gritos de náufrago. Nem dá para desconfiar que o silêncio entre certa canção e outra impossível de lembrar foram os segundos mais longos da minha vida e me fizeram começar o passeio pelos cabelos que você insistia em mudar de posição, que davam golpes no meu pescoço. Meus olhares, minha pergunta descompromissada, minha tosse de nervosismo, uma das orelhas já sem o fone. Sua voz escondida, as palavras se encaixando perfeitamente entre os versos de uma cantiga depressiva. Suas histórias, suas risadas. Suas citações inaudíveis, sua timidez estudada. Nossos comentários sobre a conspiração que domina o mundo. O mundo todo era nosso, mesmo recheado de porcarias indigestas. Olhos curiosos, amigos em comum, vidas em crise, contas a pagar, dias perdidos. Sem acreditar no futuro bonito que esperava no ponto final, perguntando a nós mesmos: o que é isso? o que é isso? Corações traçando planos. Nenhum fone de ouvido mais, o aparelho de mp3 desligado. Pouco a pouco uma comunhão, um rito sem crenças, uma orquestra de sopros sem partitura. Frases soltas, histórias de infância do lado de dentro, paisagens escuras lá fora. Nenhum luar, só uma estrada cheia de curvas, uma nuvem de tempestade e um horizonte. E entre nós uma vocação para se deixar cair no desconhecido, como dois exploradores de tesouros. Crianças correndo, de ponta a ponta, no corredor vazio. Vozes agudas fazendo eco, viajando conosco. E nem sabíamos para onde estávamos indo.

segunda-feira, 10 de março de 2008

Chico


Chico era um grande camarada nosso. Inflamado, falante, bem alojado nos seus 40 anos, costumava assistir aos ensaios da banda. Antes, quando chegávamos com os instrumentos e toda a parafernália para fazer barulho e desmoralizar a paz da vizinhança, ele nos analisava de longe, ali do botequim, com o ar alegre e os raios quentes da tarde na testa. De baixo do sol, ele nos saudava erguendo o copo de cerveja no ar e os rios de suor no pescoço brilhavam. Seu cabelo aloirado também refletia a luz e era cheio de fios soltos que esvoaçavam quando ele se repousava embaixo do ventilador de teto do bar. A cara lembrava a dos condutores dos antigos bondes e o nariz era como uma cereja em cima de um sorvete. De morango, porque a fisionomia dele era eternamente vermelha. Mas um tremendo caráter. Ele nos avistava e logo conseguiu compreender que o nosso som, pesado, intrépido e rascante, era o que de melhor acontecia ali no bairro. Sabia que éramos artistas promissores. Olhava-nos com aqueles olhos que eram dois faróis acesos e fundos. E o bigode? De tão crescido, tapava a visão da boca, esquecida embaixo de um bosque espesso. Quando falava, percebiam-se os movimentos dela, como amantes embaixo do cobertor, e o som que se produzia era um trinado quase incompreensível. E ficava pensando: “eles botam pra quebrar com essas guitarras...”. Era um bebedor de cerveja, nunca pedia cachaça. Fumava até pelas orelhas, pra divertir as crianças. Delongava-se em assuntos toscos e inventados, pra distrair os adultos.

– Aeeee! Vocês tocam Roberto Carlos? Jovem Guarda!

Nem respondíamos. Íamos direto pro terraço do Felipe tocar Black Sabbath, Stones, The Smiths, Led, Guns, umas poucas da Legião.... Portanto eu nem sei como ele foi parar lá e virou visitante assíduo dos ensaios. A verdade é que o sujeito não entendia muito de rock, mas adorava todo aquele ambiente e virou nosso amigo. Não tinha nada pra fazer e ficava lá, contando piadas e mordiscando os biscoitos de anteontem nos fundos das vasilhas. Quando terminava o som ou os farelos, ia embora direto pra casa ouvir rádio. Vazava do nada. Uma arte.

Certa vez num desses ensaios, a mãe do Felipe surgiu no portão antes da hora costumeira e perguntou ao filho mais ou menos ao pé da orelha, mas gritando, em luta contra o volume altíssimo da música:

– Quem é esse homem?

Felipe contou que era um vizinho dali da rua e então ela se preparou para ir à cozinha armazenar as compras, seus braços traziam marcas rosadas esculpidas pelas alças das sacolas do mercado. Imediatamente, Chico saltou de seu canto e se prontificou a ajudá-la, acompanhando-a durante o trajeto até o interior da casa, segurando as compras pesadas.

Assim ele ia ficando e então foi convidado a assistir a um show nosso. Era um festival de bandas iniciantes num buraco medonho perto de lugar nenhum. Nós do Enxofre do Canibal fecharíamos a noite, como decidido pelo dono da espelunca. Atravessamos a cidade de ponta a ponta, com o nosso amigo a tira-colo, para no fim chegar com duas horas de atraso e perder a vez na passagem de som. Foi um evento péssimo e nossa apresentação vergonhosa, para não dizer humilhante. Cabos desconectados por almas de outro mundo na hora H, microfones com bichos que se acasalavam dentro, uma bateria feita de restos, amplificadores saídos de um churrasco de fundo de quintal... Os mal-encarados que arremessaram objetos no palco deveriam ter reparado nisso.

Mas aí, terminada a noite, o Chico, que ficara o tempo todo pousado numa margem nublada do palco, aproximou-se de nós, com a tulipa de chope na mão. Do jeito dele, firme e descansado, com pausas repentinas, com trejeitos ancestrais, agarrou-se ao nosso vocalista, deu-lhe tapinhas nas costas e disse:

– Cara, vocês arrebentaram! – Então ele deu uma respirada funda e se deteve num olhar lento e penetrante: – Alyson.... você canta muito, cara. Vocês arrebentaram. Mesmo. Eu tô falando sério... – Segurou-o pelos ombros e permaneceu um demorado instante ali parado, fitando-o, cogitando mais algumas belas palavras para dizer: – Cara, vocês arrebentaram! – Abraçou-o longamente. Perdido em calafrios de contentamento. Uma garotinha que se regozija no novo parque do bairro. E aí puxou um cigarro e foi lá pra fora fumar. Nunca vi fisionomia mais vermelha do que aquela. Um pimentão bigodudo abraçado à fumaça, apoltronado no meio fio, rindo sozinho, bebendo cerveja. Um verdadeiro fã.