quarta-feira, 4 de junho de 2008

Aff... deixa eu dormir


O show tinha terminado tarde da noite e a gente guardava os instrumentos suados em suas capas de couro quando, na porta da antecâmara minúscula onde estávamos, que os entendidos de metáforas até poderiam chamar de camarim, surgiu o dono da birosca:

– Por que não saíram ainda, porra? – disse isso e voltou ao seu lugar, atrás da caixa registradora, lá no balcão da entrada.

Alyson, nosso vocalista, apoderou-se de uma cadeira e com ela quebrou o espelho a golpes precisos e também todas as lâmpadas em volta, uma por uma. Lá na frente do bar não era possível ouvir os barulhos porque a porta já estava fechada. Cacos de vidro e vinho no chão sujo. Ele sempre tinha essas exaltações coléricas pós-show. Eu soube mais tarde que esse era o seu o método para lidar com a síndrome do pânico. Durante o show era como se ele armazenasse um estoque oculto de angústia e aí no fim descarregasse o acúmulo em forma de raiva. Naquela época, como agora, os motivos de angústia se multiplicavam como se brotassem de todos os lados, era só ligar a televisão e comprovar isso. Cada um tem o seu método para não enlouquecer de vez. O do Rafael era tacar porrolho na cabeça das pessoas felizes. O do Jadilson era aplicar um Hadouken nas mulheres que o rejeitavam. E o do Alyson era bater com as pernas de uma cadeira convulsivamente no meio de um grande espelho iluminado.

Caímos fora dali rapidinho, pelos fundos, com garrafas de bebidas nas mochilas. Mais uma noite dessas em que a gente pensa “puta que pariu, vamos esquecer tudo isso”, só para no dia seguinte relembrar cada minúsculo evento entre um cálice e outro de vinho amargo na varanda do Felipe.

Fiquei na calçada, sentado num desses blocos de concreto, usados para os carros não estacionarem na calçada, ouvindo os outros da banda discutirem aonde iríamos àquela hora da madrugada. Tanto frio que nem a garrafa de Velho Barreiro que a gente dividia poderia diminuir meu mal-estar. Jogados no meio da rua, sem uma viva alma circulando pelas esquinas desertas. Só o Chico mesmo para nos alegrar, ele que quando dava uns tragos além da conta ficava babando feito criança e era nosso fã. Quem o via conosco, pensava que estávamos conversando com um desses bêbados do asfalto que os botecos do Rio produzem em escala industrial, ou então com um desocupado cheio de pulga. Quer dizer, acho que ele era mesmo um desocupado cheio de pulga, mas contava histórias ótimas da época dele, dos tempos áureos, e a gente até esqueceu que naquela hora os ônibus tinham parado de circular.

Aí vimos que a Cristiane estava de carro, uma salvadora! Veio ela guiando aquele latifúndio improdutivo sobre quatro rodas. Ela nos conhecia e tinha assistido ao show e tudo mais, tínhamos amigos em comum. Entramos na frente destinados a fazê-la parar. Fui lá falar com ela, que me olhou e disse:

– Sobe aí, cara. Dá pra dormir lá em casa, os garotos da banda também.

Subimos no carro. Lógico que o Chico também foi. A gente não podia deixá-lo sozinho ali naquele fim de mundo tosco e violento. Na verdade não havia mais lugar quando Chico entrou, por isso ele teve que ir no colo de alguém, o meu, pra variar.

Chegamos à casa da Cristiane e nos repousamos na sala aconchegante, recostados em almofadas de veludo. Chico aninhou-se imediatamente no maior puff do recinto e ali ficou, olhando o teto e falando sozinho enquanto puxava o maço de cigarros. Vários bibelôs extravagantes em volta, quadros imponentes com cenas mitológicas, porta-retratos de pessoas alegres, penduricalhos brilhantes agarrados às paredes, e o Alyson enfaixando seu pulso ensangüentado, atingido pelos estilhaços daquele espelho nos fundos da birosca.

Chico sorriu ao observar uma coruja ornamental maia com as patas solenemente firmadas numa base de ébano, e olhou na minha direção:

– Coisa fina, heim?

– Isso é gente bem selecionada – respondi.

Veio a mãe da Cristiane enfiada em roupas de dormir. Girou o olhar na nossa direção, balbuciou palavras indecifráveis em diálogo sonolento com a filha e então percebeu o Chico viajando na dele, fazendo uma fumaça. Ela fez uma cara como se estivesse abortando ali na hora, mas contendo a aflição. Ficou recolhendo as cinzas sobre o tapete com um aspiradorzinho de pó.

Fui ao banheiro dos donos da casa vomitar. Não consegui. Temia que o pai da Cristiane, roncando na cama, escutasse os sons. Fiquei ali parado e ouvi a mulher dele entrar no quarto:

– Gilberto, tá acordado?

– Merda, são três horas da manhã, o que você acha?

– Tem uns amigos da Cristiane querendo dormir aqui.

– Ué, fazer o quê, né.

– Eles são esquisitos.

– E daí, Regina? Você é meio anã e dorme aqui há vinte anos, não dorme?

– É que... tem um homem junto com eles.

– O quê?

– Tem um cara ali com eles.

– E agora?

– Ô Gilberto, faz alguma coisa.

– Aff... deixa eu dormir, deixa.

Uma hora depois, quando estávamos numa varanda escura nos tornando zumbis aborrecidos, veio a Cristiane aconselhar que nos retirássemos para esperar os ônibus do amanhecer. Fui ao jardim e vomitei num cesto de lixo grande. Os cachorros latiram, mas em seguida voltaram a se enroscar uns nos outros dentro da casinha em forma de castelo, cansados demais.

E aí saímos no silêncio, ziguezagueando rua afora.