quinta-feira, 5 de junho de 2025

Sete casas

 



Diziam que era artista. Sempre com um violão nas costas, livro debaixo do braço, barba grisalha muito comprida, óculos escuros e uma túnica escura toda bordada, mangas compridas, mesmo num calor de quarenta graus. Subia e descia a rua Quaraim carregando um olhar que atravessava as pessoas, como se lesse o que vinha depois delas. Qual morador de Piedade nunca tinha avistado o artista, nem que por um segundo? Primeiro chegava o bafo do incenso, depois ele surgia, sem pressa nem sorrisos, na mansidão de andarilho solitário, entrando pelo portão, vindo sabe-se lá de onde. Espalhou-se tanto a fama dele que as crianças corriam para a calçada oposta quando passavam em frente à casa de muro baixo, quintal sujo de folhas descaídas e varanda ornada por guirlandas místicas, sóis, luas e figuras tenebrosas de aspecto humano e animalesco. Podia ser perigoso, alertavam. Sons exóticos eram ouvidos à noite, como se a casa gemesse uma guitarra distorcida e estourasse por dentro, mas com ritmo. Atrás de grades de metal trabalhado, aquelas eram as únicas janelas no quarteirão inteiro que não recebiam decorações nas festas de Natal e Ano-Novo.

Darley não tinha a intenção de se aproximar da casa. Mas um imprevisto aconteceu e o acaso, ou o que quer que fosse, encontrou uma brecha. Seu gato – o único companheiro desde a mudança para a rua Quaraim – desapareceu uma tarde. Deve ter pulado o muro para explorar o novo território, mas até aquela hora não havia voltado das aventuras. Os pais sugeriram espiar debaixo dos carros estacionados, nas caçambas de lixo, no beco cheio de mato que dava para a Bento Lima e, claro, perguntar aos vizinhos. Por horas Darley procurou o gato e, ao passar pela casa do artista, algo o fez estancar o passo. Na varanda, o felino descansava, a preguiça de sempre, tranquilo, lambendo as patas. Antes que pudesse chamá-lo, a porta da frente se abriu com um rangido brusco, revelando o vulto do morador, que não disse nada. O animal entrou correndo, sem hesitar, e desapareceu lá dentro. Darley e o artista foram atrás. A porta se fechou com uma ventania repentina.

Havia medo, evidentemente. Quando se tem treze anos e ainda se fala com voz de criança, é de se temer muita coisa. Não aquele medo teatral, de filmes ruins, mas um medo verdadeiro: manifestado quando se cruza uma linha invisível entre fantasia e realidade. E havia os boatos. O sujeito seria adepto de artes sinistras, de costumes nirvânicos, de práticas alucinógenas... Os boatos talvez existam como uma espécie de acúmulo, como uma espécie de nuvem pesada sobre nós que, em vez de esconder, ao contrário, concentra verdades demais, tudo no mesmo ponto. E esse ponto no caso era a sala esfumaçada do artista. Ali estava ele, no lugar mais evitado da rua, sobre o qual se falava sussurrando para não despertar vibrações negativas.

No começo, desequilibrou-se e achou enjoativo o aroma das ervas queimadas no incensário de madeira. Depois, reassumiu o prumo e a constância dos sentidos, já sentado, bebendo água num sofá velho de couro, a convite do anfitrião. O som que saía das caixas era denso, grave, feito para sacudir os ossos – melodias com dissonâncias severas que bem podiam espreitar o limite da sanidade. Abajures pálidos lançavam luz vermelha sobre mapas estendidos em uma escrivaninha. Máscaras de baile, violões, guitarras de diferentes marcas, um banjo, uma lira e o que parecia ser um alaúde ou outra peça medieval ocupavam as paredes. Era um verdadeiro músico. Fitas e mais fitas se espalhavam pelo chão entapetado. Algumas dessas gravações ostentavam capas que eram verdadeiras obras de arte, imagens saídas de possíveis pesadelos psicodélicos: confetes prateados em nuvens escuras, portais suntuosos, orgias bestiais... Na certa, também pintava. Conseguiu ler os títulos: Tramas Mentais (versão V), Carnaval Dark (versão X), Rituais (faixas testadas)... O artista contou que havia composto cada uma das peças musicais ali presentes. Darley aguçou os ouvidos, o som ricocheteou dentro dele. O baque sonoro era altíssimo, em último volume, jorrando angústia e potência. O fluxo das notas em rebelião não era disperso, mas conforme, disposto num arranjo metódico e brilhante.

– O que está tocando também é composição sua? – quis saber, ao passo que o artista fez que sim com a cabeça e acrescentou:

– Minha e de uns amigos aqui de Piedade. Considero mais como pesquisas sonoras do que como obras finais. Algo está sendo trabalhado com esses sons, percebe? Chegaremos aonde queremos chegar, mas ainda não é o momento. Quer mais água gelada?

Darley aceitou outro copo, a sede era grande. Enquanto descansava da procura pelo gato, percebeu que havia outros na casa. Estavam reunidos de conversa com o seu e eram admiráveis os diálogos corporais dos bichanos no recinto de poucas saídas e retratos espalhados que também pareciam assistir, de longe, ao farejar mútuo dos animais. Uma dessas fotos chamou a atenção. Antiga, em um porta-retratos sobre uma pilha de livros de grossas lombadas. Uma criança – ele mesmo – em frente a um muro de pedras, segurando a mão de alguém que a luz do tempo havia borrado. Não podia ser. No pescoço do garoto, um colar com um pingente em forma de estrela de sete pontas – pequeno, mas nitidamente metálico, com as arestas afiadas como garras. Nunca tivera um colar assim. Nunca, até onde lembrava. Sentiu o estômago virar. Impossível. Aquilo não existia.  

– Você não se lembra mesmo, né? – disse o artista, com uma voz baixa, quase satisfeita, como se estivesse cumprindo um desígnio maior, com uma paciência que ultrapassava a lógica. Darley era empurrado de volta para um lugar anterior à memória. O artista queria algo dele? Notou a atenção que o homem prestava na sua voz, na música das palavras nervosas que conseguia escolher.

Encarou então a fotografia por mais tempo que gostaria e reparou agora que havia outras pessoas na imagem, apoiadas no tal muro, acinzentado. A pose era séria, de quem tem altos propósitos. Pessoas importantes? O pensamento foi longe. Não se lembrava de nada. Mas o muro talvez fosse familiar. Sim, aquele muro antigo de pedras justapostas ficava na rua Virgem Peregrina, perto da locadora. Ele crescera por aqueles lados do bairro. Passava por ali todos os dias. Era o muro da casa da dona Orlandina, uma professora de música que costumava tocar a sua flauta transversa na varanda para os cachorros uivarem, tão agudas eram as notas. Quebrava silêncios feito uma profissional. Darley não se conteve com a recordação e deixou escapar um sorriso. Ela era uma das pessoas na foto, tinha certeza.  

– Ela faz parte disso? Está trabalhando os sons com você? – perguntou.

– Eu, ela e mais cinco. Somos sete músicos em busca de algo ainda não consumado – respondeu o artista, observando-o com interesse. – A natureza dos outros é algo que se pode ouvir, acredita? Posso perceber a sua. Algo está se criando, algo que mais ninguém tem. Aos poucos. E quando estiver inteiro, a música também vai estar.

Recuando um passo, Darley não tirou os olhos do porta-retratos. Um zumbido fino atravessou o ambiente, vindo de lugar nenhum – talvez da caixa de som, talvez de dentro da cabeça dele. À medida em que fixava as vistas, algo na foto mudava. A criança parecia estar encorpando. Lentamente. Até ganhar a altura dos outros. Como uma lembrança que, em vez de surgir na mente, emergia no mundo físico. Aquilo era só papel, queria crer. Só uma imagem. As certezas se desfaziam enquanto o artista também se punha calado, olhos presos na cena antiga à sua frente, como se esperasse por algo há muito tempo previsto.

Darley tinha que perguntar de onde viera a foto, como ele o conhecia, quem eram as outras figuras. Mas a garganta apertou, um engasgo, um sufoco cresceu nele. A voz saiu, enfim. Uma nova, não mais infantil. Era grave, destacada. Reverberou em harmonia com a música.

– Os lugares estão guardados – disse o artista. – Faltava você.

Os gatos agora corriam pela sala, em frenesi repentino. O zumbido se tornava nota, a nota virava acorde – único, irreal. Um acorde alongado, feito o início de uma música que ninguém ousava tocar inteira. E Darley entendeu, sem saber como: aquela casa não era um lugar qualquer. Era uma fronteira. E o artista... não era só artista. Era sentinela.

Não sabe quanto tempo passou, mas foi o suficiente para ouvir o que cada uma das personagens da foto representava. Sete quarteirões. Sete casas. Sete músicos que perpetuam o segredo. O artista, na frente dele, era o perito da guitarra e protegia o alto da Quaraim, sua morada. Na rua Virgem Peregrina, outra quadra, a dona Orlandina continuava de vigília, a flauta em mãos. Quem resguardava o quarteirão de cima, pelas bandas da Antônio Vargas, ao dispor da iminente invocação, era um antropólogo de mais de quarenta anos e traços juvenis, barba feita, devotado à bateria. Já na parte de baixo, que chega à rua Paranapiacaba, corria o domínio de uma gótica que nunca saía do quarto, que diziam doente até, nutrida pela consolação dos teclados desde menina. Aproximando-se da Padre Nóbrega, havia um casarão de três andares e azulejos portugueses que abrigava do sol o maior dos baixistas vivos, o dono do terraço. Na rua Ada, em frente à bomba de gasolina, um diretor de escola de samba que regia os sortilégios da percussão também se mantinha a postos, pronto para o chamado, afinando o repique. Por fim, completando as sete pontas da estrela, vivia de sobreaviso no quadrante que lhe fora concedido, lá na Teixeira de Pinho, aquela que detinha os esquemas das cordas líricas, uma sacerdotisa wicca agraciada com as manhas do violino.

Todo um pedaço do bairro reservado como um palco. Foram até a escrivaninha. Uma estrela perfeita no mapa suburbano. Cuidadosamente desenhada. Os nomes, as marcações das casas, os instrumentos. Os músicos mantinham caixas acústicas poderosas sempre ligadas, atrás das janelas.  

– Cada um de nós guarda um som, uma lasca do todo, um alicerce – explicou o artista, em palavras humanas, enquanto afinava uma guitarra, os olhos vidrados em algo muito além dos muros. – Cada timbre carrega uma nota impossível, herdada de um tempo em que os sons e os objetos que os produziam eram a mesma coisa. Quando tocarmos juntos, não será só música. Será travessia.

– Travessia para onde? – Darley indagou, finalmente.

O artista deu um sorriso que não chegava aos olhos:

– Depende de quem estiver ouvindo. Alguns vão para o que vem depois. Outros... não voltam.

Contou que os instrumentistas aguardavam a ocasião propícia ao ritual – o instante em que as sete notas convergiriam. E quando tocassem juntos, quando a sinfonia chegasse ao mundo pelos alto-falantes depois de longa gestação, o bairro de Piedade inteiro seria tragado para sabe-se lá onde, para dentro daqueles sons incomensuráveis que ecoariam além do tempo terreno. Disse que Darley estava ali por essa razão. Não foi por acaso. Ele fora convocado porque faltava uma oitava nota. Um elo que resolveria a dissonância, que selaria a partitura. E essa nota não viria de corda ou sopro, mas de uma voz – a dele. A voz que acabara de despontar, que agora assumia o timbre perfeito, era o elemento final. Não seria ouvinte, mas vocalista. O último acorde era um grito, um canto inigualável que só ele poderia entoar. A obra rogava pelas palavras quiméricas que dormiam em sua garganta desde que era só uma criança correndo por ruas e ladeiras.

E naquela noite, enquanto os sete músicos subiam o volume das caixas acústicas até não poder mais e as lâmpadas piscavam, enquanto o ar vibrava com o prenúncio do som impossível e as varandas tremiam, ele soube: não havia mais retorno.

    


quinta-feira, 7 de novembro de 2024

O casamento de Josephina

   

Um bilhete.

Fui embora para ser feliz com o amor da minha vida.

Lágrimas embaçaram as palavras escritas à caneta, as letras se misturaram numa dança molhada de dor. O espanto atiçou tremores nas mãos de um pai atordoado. Puxou da lembrança os trejeitos do infeliz que se interessara por Josephina. O seu sotaque lusitano, as ferramentas de pedreiro numa sacola de couro que não vê luz, o jeito furtivo de vagabundo que não pega obra, sem modos. Os bolsos vazios, tão vazios como o bonde que levará esse pai à delegacia de polícia relatar a fuga.

Doze anos, a pequena. A rua inteira sabia. Meses de cochichos, rumores sobre os seus passos ariscos, boatos que pouco a pouco se comprovaram. Olha, Ernesta, vieram me contar que a Josephina está se interessando por um português de quarenta anos de triste fama, de navalha e carteado, de dívida de botequins. Não quero a desgraça da minha filha. Disse a ela que não e que não viesse me aborrecer, tantas sacas para embarcar, balanços a fazer, tantas cobranças nessa lida difícil de pequeno empório. Me ajude aqui a equipar as carroças.

Preguiça do delegado, outros casos mais urgentes na frente, a busca precisava ganhar logo as ruas, com ou sem diligências, na surdina, que seja. No encalço de sombras fugidias por rotas de penumbra, esse pai iria às muitas rinhas de galo do centro, aos cortiços mais abafados, lar de foragidos, aos trapiches aonde as cargas proibidas se negociam. Dobraria as esquinas mais infames, atalhos sórdidos. Ao Mangue, aos antros do Mangue. É para lá que fora levada, ele tinha certeza. Baseado em quê? Não se sabe. Apenas o faro de um pai inquirindo os passantes nas calçadas sujas.  

A notícia correu, vizinhos se movimentaram, fregueses de confiança trouxeram informes valiosos. Um endereço foi citado na discrição de uma tarde, tomou-se nota. Vultos que correspondiam ao que se falou dos suspeitos. As pegadas dos dois foram seguidas por confins de terra batida, rincões tortuosos em beiras de rio. Avistou a casa de telhas jeitosas, uma casa suburbana amparada pela imagem de São Sebastião no alto de um alpendre, os cachorros em alerta, à cata dos pés que entraram pela porta depois de esfregar com força o tapete, muita lama. Esse pai se apresentou às pessoas ali sentadas entre almofadas, o senhor de chapéu em mãos, sua esposa de vestido rotineiro e os cinco filhos de diferentes idades e fisionomias, expressões modestas. Foram servidos café e bolo de milho. Nenhum daqueles portugueses presta, exclamou esse pai. Sou italiano e não tenho nos meus planos casar uma filha com um pedreiro que não pega obra. Ouviu então que, sim, ela se encontrava na casa dos fundos e não queria vê-lo. O português na rinha de galo e a menina reclusa feito pássaro engaiolado. São essas as paredes que ele ergue?

De volta aos secos e molhados, aos labores cotidianos, os frontais por pintar, os galhos descaídos, as fiações, Ernesta, eles querem a união e rogam pela minha assinatura, doze anos tem o nosso anjo. Invoco a justiça para impedir uma tragédia, a perdição de uma inocente. Aos tribunais. Vamos aos tribunais. O trabalho só vem quando faz sol ou quando os galos ficam doentes? Que imigrante é esse, Ernesta?

Josephina agora com treze anos, toda a pulsação de um tempo não celebrado, a recusa de qualquer festejo, sem sopro e sem velas. Notícias frescas na voz de conhecidos, vou falar o que é aquele lugar onde sua filha está morando. Aquela casa de fundos dorme de dia e desperta à noite, as portas para a rua de trás se abrem, o clarão vermelho chama, a compostura ali é suspensa, as vergonhas se exibem, entram olhos lascivos, a volúpia bem paga, recreio noturno remunerado ao som de música francesa, generosas somas. Aquela família da frente é quem recebe, alcoviteiros que contam as notas da malícia. E ela? E ela, nisso tudo? Esses informantes traziam o testemunho de alguém feliz, de alguém que sabe os dissabores de uma vida cortesã e ao mesmo tempo prometeu casar-se, alguém que anseia pela garantia do papel passado e de um futuro protegido, conjugal, em aliança de seres que se unem pela bonança e tranquilidade. O testemunho de alguém que só quer a aceitação e não o silêncio dos seus.

Numa manhã, a justiça, em sua frieza celestial, olhos de pedra e braços de madeira, requereu, clamou pela assinatura, a benção desse pai na certidão que lhe abriria passagem para o infortúnio dos santos homens e ele se apresentou. Dentro do corpo da justiça, o respirar dos saguões, a estatura dos ambientes, a grandeza sem fim dos espaços de sombra ao som dos escrivães. Os sapatos não tocavam o piso de mármore, a cadeira alta. Tremeu entre os rábulas. Alisou as costeletas, aprumou o terno, empunhou a caneta feito uma arma, o tiro de misericórdia, o rabiscar largo de um danado, rubricou folhas, agasalhou-se e ganhou a rua para ir, cabisbaixo, orquestrar o empório. 

sexta-feira, 12 de abril de 2024

Crias chulas

 

    E pensar que está ali só para fazer um favor à filha, tomar conta dos três netos, muito a contragosto, a tarde inteira e um pedaço da noite. Lógico que diz a ela que está tudo sob controle, ao vê-la sair apressada para o trabalho avisando o de sempre, que ele pode ligar a qualquer hora, a porta se fecha.

    A algazarra, os deveres de casa por fazer, o assalto das mãos no ventilador, o mais tinhoso segura as hélices, zumbido de motor em desarranjo, logo o falatório, as celeumas, tudo irrita, as cotoveladas na guerra doméstica pelos controles do videogame, a cólera dos rivais, uma briga estúpida por espaço na frente da televisão, as vaias que se seguem aos fracassos dos bonecos na tela. A porrada come, agora não só no jogo, mas na sala tumultuada, ele puxa o cinto para dar uma lição nos fedelhos, segura a calça, o vento do couro só arranha as costas dos moleques em rebuliço em volta do avô, gargalhando de escárnio. Driblam em zigue-zague os seus passos lentos, sambam no piso. A fivela pesada gira fraca na mão de Seu Venâncio na busca dos corpos móveis que fogem e riem. Riem dele? As chicotadas no ar quase o fazem tombar cansado entre as estantes. A tontura chega, mas a mão é firme ao desprender da tomada o aparelho preto no rack, só uma tremedeira de leve.

    É delegado aposentado. Os netos deviam respeitar os quarenta anos de prática, de vida policial e de sapiência no trato com menor. Mas a filha, com certeza, devia também saber que ele não tem obrigação nenhuma de vir àquele apartamento sem elevador, os interruptores difíceis de encontrar, dois dias por semana, às vezes três, longe da casa onde mora, da praça, das amendoeiras, das suas caminhadas, a viagem de ônibus é fatigante, o chofer sem consideração pelos cabelos brancos, a filha não sabe que ele precisa alimentar os chupins baianos, instruir os papagaios, proteger as saíras? Pôr na sombra as gaiolas? Tantos remédios para tomar, tantos vizinhos necessitados de opinião, de palpites sobre as normas da rua, de pistas sobre os vagabundos da área.

    Esse caçula dos três é o que mais dá nos nervos de Seu Venâncio. Esquece o nome do neto. Qual é mesmo? Rogério. Rogerinho, para a mãe. Tem onze anos, ou dez, não faz diferença. No conforto da cadeira de balanço, Seu Venâncio quase dorme antes que o estrondo aconteça na cozinha. Um barulho feito trovoada. É Rogerinho que desaba em fragmentos de segundos depois de trepar na geladeira em busca do quadro de luz. Panelas, talheres, apetrechos culinários amontoados, um estorvo, dificultam a passagem. Sem energia no apartamento, no prédio?, mas o guri ligado, não se pode tirar a sesta perto dele. Tudo é escuro. O fogo salta e a frigideira domina a atenção. Sobe no skate, frita hambúrgueres para matar a fome que não desaparece nunca, não é possível que os biscoitos de saco não bastem. Mastiga feito uma fera, os alicates tombam pelo vidro da mesa, o mais velho e o do meio remendam fios, as lâmpadas acendem. Rostos curiosos espiando a tela novamente, filmes de sacanagem. Os irmãos batem, chutam, fazem tremer a porta do banheiro, mas o banho do caçula é o mais demorado de que se tem notícia.

    Seu Venâncio consegue um raro cochilo, põe-se a roncar, sonhos fugidios, e só abre os olhos ao intuir, pelo farfalhar de chave, a filha recém-chegada da emergência para onde Rogerinho fora levado. O neto traz o ar manso das salas de espera de hospital, deita-se no sofá, tira a bermuda, sem cueca por baixo, olha, meu curativo. O avô agora se lembra da gritaria no apartamento iluminado, lá dentro do banheiro a repetição ai, meu pau!, ai, meu pau!, o sangue a escorrer pelas pernas do menino. Os irmãos na baderna, a chacota, os xingamentos, as portas escancaradas, o corredor lá fora tomado de horror, os telefonemas. Um médico de adultos é o responsável pela costura do dano, de todo aquele carnaval insolente.

    A filha diz que é fimose, que os pontos são firmes e a dor controlada, que todo garoto passa por isso, foi assim com os outros, e que nada será dito na escola para não emocionar os professores, ao passo que Seu Venâncio puxa da lembrança as suas próprias agonias infantis, os seus deleites diante de graças misteriosas, as suas degustações, os seus desfrutes culpados. O nervoso do neto ao golpear o controle do videogame cada vez mais rápido, cada vez mais forte, ávido por obter o quanto antes alguma coisa prestes a aparecer na tela, umas moedas, um troféu jorrando confete, uns corpos ensanguentados depois da luta. Isso é bronha, isso só pode ser bronha, denuncia, ao movimento da cadeira de balanço, o dedo em riste, o vai e vem do braço acusador.

    Conclui que é bronha, só pode ser. Depois pega no sono de novo.

terça-feira, 6 de fevereiro de 2024

Fogueira de Natal

Por que esse tio Quincas nunca veio aqui em casa, pergunto à mamãe, entrando na conversa dos adultos.

Na sombra do quintal, as mangas são descascadas pelos meus irmãos mais velhos e, na mesinha de jogo, mamãe, papai e a vovó relembram histórias de Portugal e do Brasil, dos parentes de grande conceito e dos que não têm muita estimação.

Quero formar uma ideia na cabeça sobre meu tio, por isso cutuco mamãe e fico irritado, deixo cair minhas bolas de gude que se espalham entre as cascas jogadas às galinhas, puxo sua saia e ela então ri muito alto. Diz que todo ano, perto do Natal, o tio Quincas aparece aqui na Ladeira do Barroso, eu é que não me recordo. Era muito novo para me lembrar da última vez em que ele surgiu no portão de ferro da rua para que vovó pudesse levá-lo até o quintal dos fundos e resolver o problema dele.

Recolho as bolas de gude do chão e mamãe me conta que elas foram um presente do meu tio, que elas vieram dos subúrbios de Lisboa, onde ele havia sido feliz algum dia. Muitas das coisas da terrinha foram esquecidas por lá, mas os brinquedos dele e dos irmãos encontraram novos lares quando atravessaram o oceano.

Pesadinhas, elas são cristais redondos nas minhas mãos. Perfeitas! Noto os seus raios vermelhos e brancos e como deslizam fácil pela terra, e logo a imagem do meu tio que aparece no pensamento é cheia de uma luz dessas que iluminam os santos e os grandes reis pintados nos quadros da igreja e nos livros da escola. Por isso não entendo como o generoso tio Quincas, que dá aos outros as suas próprias joias, pode ser atacado com palavras tão feias da boca de mamãe e papai e colocado na qualidade de parente sem grande estima, um familiar de quem se fala com voz grave quando não está presente e nunca é convidado para ouvir rádio ou dividir a mesa da janta.

Só a vovó não fala mal dele. Não diz um ai. O galo de briga canta no cercadinho e ela vai até lá encher a caçamba de água e o pote do milho. Vai servir em muitas rinhas ainda, diz. Desde que vovô morreu essa solução não sai do horizonte: o tio Quincas passaria a ser o treinador do galo e o resultado viria em forma de dinheiro para remediar o que quer que tenha acontecido. Mas enquanto ele não chega, é essa a situação: as galinhas soltas por aí, peraltas, barulhentas, e o galo de peito mirrado, cantando cada vez menos.

Subo até o fim da ladeira e daqui de cima o porto, os navios de muitas bandeiras que chegam, os mastros altos que aparecem desde o fim da visão, tudo fica menor e a fumaça das chaminés se mistura com as nuvens. Me pego imaginando o tio Quincas no atracadouro, recém-chegado, o saco das bolas de gude no bolso do paletó e o endereço dobrado com jeito num envelope grande, em busca de algum rosto conhecido, ele, o último dos viajantes da família, ainda mareado, e fico sem saber quanto tempo se passa até o dia em que ouvimos os seus passos mansos e sua voz fraca lá na frente da casa chamando pela irmã naquela véspera de Natal ensolarada.

Vovó corre para avistar esse homem muito diferente dos meus devaneios, dizer olá, meu irmão, espantar-lhe as moscas e acompanhá-lo até o quintal dos fundos, esse sujeito distante que bem poderia ter chegado de uma guerra ou de qualquer outra luta da vida. Mamãe e papai, e também os meus irmãos mais velhos, não saem de seus afazeres, da lida na cozinha com as sobras da goela de pato e as garrafas vazias de azeite, mas espiam de vez em quando pela janela.   

Meus olhos ficam pequenos e curiosos. Estou de pernas cruzadas no batente que dá para o terreno atrás da casa quando tomo conhecimento que vêm meus primos, lá da rua da padaria, assistir ao que se prepara. Vovó me pede que segure os pertences do tio Quincas: uma carteira, um pente de madrepérola, um baralho de cartas e uma lata enferrujada de tabaco. Ele permanece de pé, com os bolsos da calça para fora, as mangas de camisa que um dia foram claras, o olhar amuado.

Chegam os meus primos e lhe agarram o paletó duro das muitas tempestades, como se arrancassem a armadura de um gigante. A casaca fica ali estirada no chão antes que voem as outras peças imundas. Percebo que as sandálias rasgadas de couro têm remendos em muitos lugares. Vovó ralha com as crianças por bagunçarem os esquemas. Cada coisa em seu lugar, diz, enquanto ergue as roupas com a ponta do cabo de uma vassoura e tampa o nariz, incomodada com os odores revividos. Enrola tudo e enfia no balde onde se guardavam os panos da limpeza. Resmunga: você não leva jeito! Você não leva jeito!, ao passo que o meu tio se mantém mudo no trabalho de procurar bichos escondidos pelo corpo magro repleto de manchas embaçadas de suor e miasmas.

Dentro da tina, de cócoras e ensaboado como qualquer pessoa no banho, parece com lágrimas no rosto, mas não sei se chora ou só está incomodado com a água que a vovó lhe despeja na cabeça. Depois, já mais alegre, fica de pé esperando o esguichar da mangueira. A brancura do tio Quincas se mostra e a esponja derrama um caldo marrom quando é espremida. Está seco agora, nenhum mofo. Vovó lhe entrega roupas novas, dobradas, e também sapatos, brilhosos. De paletó e calças brancas, tem a aparência de outra pessoa, maior que muitos homens.  

Ela vai buscar a enxada que usa nas tarefas da horta e abre uma cova na terra, fazendo as galinhas correrem. Joga no fundo as roupas sujas e as sandálias puídas, risca um fósforo e as chamas agitam até as minhocas. 

Já com os pertences de volta, o tio se penteia no sol. Os cabelos ainda molhados fazem uma onda e os olhos azuis lembram as minhas bolas de gude. O perfume lhe escorre pelo pescoço. Diz tchau e obrigado, apanha o galo e vai embora.

Vovó, ele esqueceu isto aqui! Mostro a lata pesada na minha mão e ouço dizer que era mais uma prenda do tio. É para você, ela responde.

Puxo a tampa querendo saber o que tem lá dentro e recolho um punhado de balas coloridas. Fico surpreso ao descobrir que cada uma esconde uma figurinha de um jogador de futebol diferente, dentro do papel celofane.

Sorrio, mas com um sorriso mais pesado na boca, sabendo que o tio Quincas só era visto uma vez por ano e eu teria que esperar até o Natal seguinte e o outro e o outro para ficar mais entendido das coisas da família.

terça-feira, 19 de setembro de 2023

Release

 



ENXOFRE

 

de MARCOS AQUINO

 

Editora Luva

Romance

ISBN 978-65-00-76102-3

160 páginas

R$ 44,90

 

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Enxofre - Luva Editora


Esqueça as casas simples, as cadeiras na calçada. A Piedade de Marcos Aquino é outra - dura e pesada como o som do Enxofre do Canibal.” Fernando Molica, escritor

 Rock pesado, camisetas negras, cabelos compridos e olhar enfadado refletem não apenas a rebeldia da adolescência como também o receio de adentrar a vida adulta, se “enquadrar” – e quem não passou por isso? Os personagens de “Enxofre”, primeiro romance do escritor Marcos Aquino, trazem o cheiro de álcool e cigarro, dos quartos ao meio-dia com cortinas cerradas, guitarras distorcidas e a ânsia de chegar a algum lugar além da mediocridade que parece reinar. Mais que um romance de formação, o maior atrativo deste livro adorável e corajoso, é a maneira de narrar:

Em Piedade, longe da civilização, ainda na tarde alta, havia também toda uma sonolência própria que continuava atrás das janelas fechadas, varandas vazias e patas caninas em repouso entre as grades dos portões.”

A trama se passa no subúrbio do Rio de Janeiro – sim, existe vida inteligente, e muito, por lá – e acompanha a trajetória de um grupo de jovens envolvidos com a idealização, produção e lançamento de uma banda de rock chamada Enxofre do Canibal. Jadson – que nos remete à Dean Moriarty, de “On the road”, de Jack Kerouac –, é o mentor intelectual do grupo:

Os óculos vinham pousar com lucidez no rosto maltratado, conferindo-lhe um semblante de intelectual do underground, de pensador artista, de roqueiro erudito, tudo isso explodindo naquele significativo aperto de mãos, reverberando naquele cumprimento que me transmitiu um bloco inteiro de informações, que me disseminou o futuro”.

Thaiane, a musa: “(...) rígida demais, o nariz agudo que se destacava no vale deserto do rosto, o coturno de cadarços entrelaçados até o alto das finas canelas.”

Felipe, narrador em primeira pessoa – não confiável –, é avesso à luz do sol: “(...) Ia e vinha e era com brio que as pernas também trabalhavam, dedicadas a perseguir o curso das sombras, por estreitas que fossem, de tal maneira que era levado a me apertar entre carros e paredes de chapisco quando necessário, por vezes saindo ferido num roçar de braço, mas sempre ao abrigo do fogo”.

Esses trechos são um breve aperitivo desse romance cheio de punch – palavra do idioma inglês que significa ‘soco’, ‘pegada’ – e de referências musicais que farão a retumbar os corações chegados ao rock. Ao virar de cada página, a vontade é de gritar uhuu com os dedos em forma de chifres e aumentar o volume das caixas.

 

Marcos Aquino é escritor, sociólogo e servidor público do estado do Rio de Janeiro. Escreve em blogs na internet desde 2008. Em 2018, foi finalista do Prêmio Sesc de Literatura. “Enxofre” é seu primeiro romance publicado.


quinta-feira, 13 de setembro de 2018

O segundo bairro


Era a época da chuva que se infiltrava pelas soleiras, a chuva que os especialistas diziam se aproximar e que nunca chegava e até adiou a mudança e quando, enfim, apareceu, lavou aquele chão de folhas perdidas por onde você pisou para me descobrir, enquanto eu mesmo me deixava levar pelo bairro novo.  

Lembro quando aquelas cercanias eram uma tela em branco na minha cabeça, eu recém chegado e você se perguntando se eu poderia ser teu, se o bloco de carnaval poderia ser nosso, se o fim de semana poderia nos receber para mais uma das nossas sessões de descoberta mútua onde tudo se realçava a olhos curiosos.

Esperava, detrás da porta, a música dos teus passos, como quem se eleva do chão sem tocá-lo para não interferir na placidez do momento, eu que me perdia na adivinhação do segundo exato em que seria preenchido de um sentido mais concreto, de quando seria finalmente alvo dos raios solares do teu olho.  

Pois quando fui residir no bairro, não era para me abrigar; era para me abrir e ter uma companhia até as prateleiras da locadora de dvds; era para seguir de mãos dadas o caminho da loja de vinhos, alcançar, lado a lado contigo, o clarão dos balcões de padaria. Pois essa coisa de ter você depois ganhando o corredor, conquistando terreno entre os meus livros e, enfim, no mesmo sofá, comentando esta ou aquela cena de um filme, tomando café com croissant e broinhas de milho, era com o firme propósito de fazer surgir algum ambiente ainda não demarcado onde eu e você pudéssemos dar sentido a tudo o que viria nos envolver dali em diante, como dois desbravadores que dividem a mesma vontade de possuir o novo.

Foi tudo para você ganhar um cenário que te definisse, como se aquele balançar das copas das árvores altas viesse inteiro para te conter como num abraço e você estivesse chegando para se envolver nele, para se misturar e se confundir com as cores do bairro, aquelas cores translúcidas que me vêm tingindo até hoje, por cima da poeira, me preenchendo.

E aí você passou a existir junto com tudo aquilo, com todo aquele quadro delicadamente fundido às linhas recém-chegadas do teu rosto.

Mas se já nos fixamos, eu e você, em novas paisagens, com novos horizontes, cada retorno às sombras dos muros na direção da praça em rebuliço aos domingos, cada visão dos canteiros bem cuidados de terra úmida enfeitando as calçadas, te trazem inteira diante de mim exatamente como naquele primeiro olhar.  

sábado, 11 de janeiro de 2014

Minha menina

Às vezes parada, inventando em silêncio gestos que não se concluem. Às  vezes sonora, numa ânsia de contato e calor. Exploradores, os olhos se buscam e se enchem de realidade. Não são ainda olhares, porque fazem parte do cenário olhado, esse oceano populoso e emaranhado que os outros chamam de gênero humano. Motivos, causas e efeitos, escolhas e desculpas, direções e verdades, são coisas pesadas demais. É para uma lembrança vívida do útero durante um banho quente que ela aponta as suas vontades, em sonhos investigativos.

"Viver é muito difícil", ela pensa, quando compõe giros de dor ou espreita, imersa na penumbra, as sombras vigilantes na plateia.

"Qual parte do mundo sou eu?", indaga, com os braços agitados e um pouco exaurida dessa brincadeira de colorir-se e incorporar o que não é mundo.  

Pois a vida dela é uma procura. Essa menina vai primeiro absorver como esponja cada uma das lágrimas de felicidade e também as de preocupação. Depois vai mergulhar na busca de um espelho perdido de si mesma no meio da chuva de possibilidades. Vai se debruçar na janela, e vai criar raízes, para enfim tornar-se botão de flor.