Diziam
que era artista. Sempre com um violão nas costas, livro debaixo do braço, barba
grisalha muito comprida, óculos escuros e uma túnica escura toda bordada,
mangas compridas, mesmo num calor de quarenta graus. Subia e descia a rua Quaraim
carregando um olhar que atravessava as pessoas, como se lesse o que vinha
depois delas. Qual morador de Piedade nunca tinha avistado o artista, nem que
por um segundo? Primeiro chegava o bafo do incenso, depois ele surgia, sem
pressa nem sorrisos, na mansidão de andarilho solitário, entrando pelo portão,
vindo sabe-se lá de onde. Espalhou-se tanto a fama dele que as crianças corriam
para a calçada oposta quando passavam em frente à casa de muro baixo, quintal
sujo de folhas descaídas e varanda ornada por guirlandas místicas, sóis, luas e
figuras tenebrosas de aspecto humano e animalesco. Podia ser perigoso, alertavam.
Sons exóticos eram ouvidos à noite, como se a casa gemesse uma guitarra
distorcida e estourasse por dentro, mas com ritmo. Atrás de grades de metal
trabalhado, aquelas eram as únicas janelas no quarteirão inteiro que não
recebiam decorações nas festas de Natal e Ano-Novo.
Darley
não tinha a intenção de se aproximar da casa. Mas um imprevisto aconteceu e o
acaso, ou o que quer que fosse, encontrou uma brecha. Seu gato – o único
companheiro desde a mudança para a rua Quaraim – desapareceu uma tarde. Deve
ter pulado o muro para explorar o novo território, mas até aquela hora não havia
voltado das aventuras. Os pais sugeriram espiar debaixo dos carros estacionados,
nas caçambas de lixo, no beco cheio de mato que dava para a Bento Lima e,
claro, perguntar aos vizinhos. Por horas Darley procurou o gato e, ao passar
pela casa do artista, algo o fez estancar o passo. Na varanda, o felino descansava,
a preguiça de sempre, tranquilo, lambendo as patas. Antes que pudesse chamá-lo,
a porta da frente se abriu com um rangido brusco, revelando o vulto do morador,
que não disse nada. O animal entrou correndo, sem hesitar, e desapareceu lá
dentro. Darley e o artista foram atrás. A porta se fechou com uma ventania
repentina.
Havia
medo, evidentemente. Quando se tem treze anos e ainda se fala com voz de
criança, é de se temer muita coisa. Não aquele medo teatral, de filmes ruins, mas
um medo verdadeiro: manifestado quando se cruza uma linha invisível entre
fantasia e realidade. E havia os boatos. O sujeito seria adepto de artes sinistras,
de costumes nirvânicos, de práticas alucinógenas... Os boatos talvez existam
como uma espécie de acúmulo, como uma espécie de nuvem pesada sobre nós que, em
vez de esconder, ao contrário, concentra verdades demais, tudo no mesmo ponto. E
esse ponto no caso era a sala esfumaçada do artista. Ali estava ele, no lugar
mais evitado da rua, sobre o qual se falava sussurrando para não despertar
vibrações negativas.
No
começo, desequilibrou-se e achou enjoativo o aroma das ervas queimadas no
incensário de madeira. Depois, reassumiu o prumo e a constância dos sentidos,
já sentado, bebendo água num sofá velho de couro, a convite do anfitrião. O som
que saía das caixas era denso, grave, feito para sacudir os ossos – melodias com
dissonâncias severas que bem podiam espreitar o limite da sanidade. Abajures pálidos
lançavam luz vermelha sobre mapas estendidos em uma escrivaninha. Máscaras de baile,
violões, guitarras de diferentes marcas, um banjo, uma lira e o que parecia ser
um alaúde ou outra peça medieval ocupavam as paredes. Era um verdadeiro músico.
Fitas e mais fitas se espalhavam pelo chão entapetado. Algumas dessas gravações
ostentavam capas que eram verdadeiras obras de arte, imagens saídas de possíveis
pesadelos psicodélicos: confetes prateados em nuvens escuras, portais
suntuosos, orgias bestiais... Na certa, também pintava. Conseguiu ler os
títulos: Tramas Mentais (versão V), Carnaval Dark (versão X), Rituais
(faixas testadas)... O artista contou que havia composto cada uma das peças
musicais ali presentes. Darley aguçou os ouvidos, o som ricocheteou dentro
dele. O baque sonoro era altíssimo, em último volume, jorrando angústia e potência.
O fluxo das notas em rebelião não era disperso, mas conforme, disposto num
arranjo metódico e brilhante.
– O
que está tocando também é composição sua? – quis saber, ao passo que o artista
fez que sim com a cabeça e acrescentou:
–
Minha e de uns amigos aqui de Piedade. Considero mais como pesquisas sonoras do
que como obras finais. Algo está sendo trabalhado com esses sons, percebe? Chegaremos
aonde queremos chegar, mas ainda não é o momento. Quer mais água gelada?
Darley
aceitou outro copo, a sede era grande. Enquanto descansava da procura pelo gato,
percebeu que havia outros na casa. Estavam reunidos de conversa com o seu e
eram admiráveis os diálogos corporais dos bichanos no recinto de poucas saídas
e retratos espalhados que também pareciam assistir, de longe, ao farejar mútuo dos
animais. Uma dessas fotos chamou a atenção. Antiga, em um porta-retratos sobre
uma pilha de livros de grossas lombadas. Uma criança – ele mesmo – em frente a
um muro de pedras, segurando a mão de alguém que a luz do tempo havia borrado. Não
podia ser. No pescoço do garoto, um colar com um pingente em forma de estrela
de sete pontas – pequeno, mas nitidamente metálico, com as arestas afiadas como
garras. Nunca tivera um colar assim. Nunca, até onde lembrava. Sentiu o
estômago virar. Impossível. Aquilo não existia.
–
Você não se lembra mesmo, né? – disse o artista, com uma voz baixa, quase
satisfeita, como se estivesse cumprindo um desígnio maior, com uma paciência
que ultrapassava a lógica. Darley era empurrado de volta para um lugar anterior
à memória. O artista queria algo dele? Notou a atenção que o homem prestava na
sua voz, na música das palavras nervosas que conseguia escolher.
Encarou
então a fotografia por mais tempo que gostaria e reparou agora que havia outras
pessoas na imagem, apoiadas no tal muro, acinzentado. A pose era séria, de quem
tem altos propósitos. Pessoas importantes? O pensamento foi longe. Não se
lembrava de nada. Mas o muro talvez fosse familiar. Sim, aquele muro antigo de
pedras justapostas ficava na rua Virgem Peregrina, perto da locadora. Ele
crescera por aqueles lados do bairro. Passava por ali todos os dias. Era o muro
da casa da dona Orlandina, uma professora de música que costumava tocar a sua
flauta transversa na varanda para os cachorros uivarem, tão agudas eram as
notas. Quebrava silêncios feito uma profissional. Darley não se conteve com a recordação
e deixou escapar um sorriso. Ela era uma das pessoas na foto, tinha certeza.
–
Ela faz parte disso? Está trabalhando os sons com você? – perguntou.
–
Eu, ela e mais cinco. Somos sete músicos em busca de algo ainda não consumado –
respondeu o artista, observando-o com interesse. – A natureza dos outros é algo
que se pode ouvir, acredita? Posso perceber a sua. Algo está se criando, algo
que mais ninguém tem. Aos poucos. E quando estiver inteiro, a música também vai
estar.
Recuando
um passo, Darley não tirou os olhos do porta-retratos. Um zumbido fino
atravessou o ambiente, vindo de lugar nenhum – talvez da caixa de som, talvez
de dentro da cabeça dele. À medida em que fixava as vistas, algo na foto
mudava. A criança parecia estar encorpando. Lentamente. Até ganhar a altura dos
outros. Como uma lembrança que, em vez de surgir na mente, emergia no mundo
físico. Aquilo era só papel, queria crer. Só uma imagem. As certezas se desfaziam
enquanto o artista também se punha calado, olhos presos na cena antiga à sua
frente, como se esperasse por algo há muito tempo previsto.
Darley
tinha que perguntar de onde viera a foto, como ele o conhecia, quem eram as outras
figuras. Mas a garganta apertou, um engasgo, um sufoco cresceu nele. A voz
saiu, enfim. Uma nova, não mais infantil. Era grave, destacada. Reverberou em
harmonia com a música.
–
Os lugares estão guardados – disse o artista. – Faltava você.
Os
gatos agora corriam pela sala, em frenesi repentino. O zumbido se tornava nota,
a nota virava acorde – único, irreal. Um acorde alongado, feito o início de uma
música que ninguém ousava tocar inteira. E Darley entendeu, sem saber como:
aquela casa não era um lugar qualquer. Era uma fronteira. E o artista... não
era só artista. Era sentinela.
Não
sabe quanto tempo passou, mas foi o suficiente para ouvir o que cada uma das
personagens da foto representava. Sete quarteirões. Sete casas. Sete músicos
que perpetuam o segredo. O artista, na frente dele, era o perito da guitarra e protegia
o alto da Quaraim, sua morada. Na rua Virgem Peregrina, outra quadra, a dona
Orlandina continuava de vigília, a flauta em mãos. Quem resguardava o
quarteirão de cima, pelas bandas da Antônio Vargas, ao dispor da iminente
invocação, era um antropólogo de mais de quarenta anos e traços juvenis, barba
feita, devotado à bateria. Já na parte de baixo, que chega à rua Paranapiacaba,
corria o domínio de uma gótica que nunca saía do quarto, que diziam doente até,
nutrida pela consolação dos teclados desde menina. Aproximando-se da Padre
Nóbrega, havia um casarão de três andares e azulejos portugueses que abrigava do
sol o maior dos baixistas vivos, o dono do terraço. Na rua Ada, em frente à
bomba de gasolina, um diretor de escola de samba que regia os sortilégios da
percussão também se mantinha a postos, pronto para o chamado, afinando o
repique. Por fim, completando as sete pontas da estrela, vivia de sobreaviso no
quadrante que lhe fora concedido, lá na Teixeira de Pinho, aquela que detinha os
esquemas das cordas líricas, uma sacerdotisa wicca agraciada com as manhas do
violino.
Todo
um pedaço do bairro reservado como um palco. Foram até a escrivaninha. Uma
estrela perfeita no mapa suburbano. Cuidadosamente desenhada. Os nomes, as
marcações das casas, os instrumentos. Os músicos mantinham caixas acústicas
poderosas sempre ligadas, atrás das janelas.
– Cada
um de nós guarda um som, uma lasca do todo, um alicerce – explicou o artista,
em palavras humanas, enquanto afinava uma guitarra, os olhos vidrados em algo
muito além dos muros. – Cada timbre carrega uma nota impossível, herdada de um
tempo em que os sons e os objetos que os produziam eram a mesma coisa. Quando
tocarmos juntos, não será só música. Será travessia.
– Travessia
para onde? – Darley indagou, finalmente.
O
artista deu um sorriso que não chegava aos olhos:
–
Depende de quem estiver ouvindo. Alguns vão para o que vem depois. Outros...
não voltam.
Contou
que os instrumentistas aguardavam a ocasião propícia ao ritual – o instante em
que as sete notas convergiriam. E quando tocassem juntos, quando a sinfonia chegasse
ao mundo pelos alto-falantes depois de longa gestação, o bairro de Piedade
inteiro seria tragado para sabe-se lá onde, para dentro daqueles sons incomensuráveis
que ecoariam além do tempo terreno. Disse que Darley estava ali por essa razão.
Não foi por acaso. Ele fora convocado porque faltava uma oitava nota. Um elo
que resolveria a dissonância, que selaria a partitura. E essa nota não viria de
corda ou sopro, mas de uma voz – a dele. A voz que acabara de despontar, que agora
assumia o timbre perfeito, era o elemento final. Não seria ouvinte, mas
vocalista. O último acorde era um grito, um canto inigualável que só ele
poderia entoar. A obra rogava pelas palavras quiméricas que dormiam em sua
garganta desde que era só uma criança correndo por ruas e ladeiras.
E naquela noite, enquanto os sete músicos subiam o volume das caixas acústicas até não poder mais e as lâmpadas piscavam, enquanto o ar vibrava com o prenúncio do som impossível e as varandas tremiam, ele soube: não havia mais retorno.