Era a época da chuva que se
infiltrava pelas soleiras, a chuva que os especialistas diziam se aproximar e
que nunca chegava e até adiou a mudança e quando, enfim, apareceu, lavou aquele
chão de folhas perdidas por onde você pisou para me descobrir, enquanto eu
mesmo me deixava levar pelo bairro novo.
Lembro quando aquelas cercanias
eram uma tela em branco na minha cabeça, eu recém chegado e você se perguntando
se eu poderia ser teu, se o bloco de carnaval poderia ser nosso, se o fim de
semana poderia nos receber para mais uma das nossas sessões de descoberta mútua
onde tudo se realçava a olhos curiosos.
Esperava, detrás da porta, a
música dos teus passos, como quem se eleva do chão sem tocá-lo para não
interferir na placidez do momento, eu que me perdia na adivinhação do segundo
exato em que seria preenchido de um sentido mais concreto, de quando seria
finalmente alvo dos raios solares do teu olho.
Pois quando fui residir no
bairro, não era para me abrigar; era para me abrir e ter uma companhia até as
prateleiras da locadora de dvds; era para seguir de mãos dadas o caminho da
loja de vinhos, alcançar, lado a lado contigo, o clarão dos balcões de padaria.
Pois essa coisa de ter você depois ganhando o corredor, conquistando terreno
entre os meus livros e, enfim, no mesmo sofá, comentando esta ou aquela cena de
um filme, tomando café com croissant e broinhas de milho, era com o firme
propósito de fazer surgir algum ambiente ainda não demarcado onde eu e você
pudéssemos dar sentido a tudo o que viria nos envolver dali em diante, como
dois desbravadores que dividem a mesma vontade de possuir o novo.
Foi tudo para você ganhar um
cenário que te definisse, como se aquele balançar das copas das árvores altas
viesse inteiro para te conter como num abraço e você estivesse chegando para se
envolver nele, para se misturar e se confundir com as cores do bairro, aquelas
cores translúcidas que me vêm tingindo até hoje, por cima da poeira, me
preenchendo.
E aí você passou a existir junto
com tudo aquilo, com todo aquele quadro delicadamente fundido às linhas recém-chegadas
do teu rosto.
Mas se já nos fixamos, eu e você,
em novas paisagens, com novos horizontes, cada retorno às sombras dos muros na
direção da praça em rebuliço aos domingos, cada visão dos canteiros bem
cuidados de terra úmida enfeitando as calçadas, te trazem inteira diante de mim
exatamente como naquele primeiro olhar.