quinta-feira, 13 de setembro de 2018

O segundo bairro


Era a época da chuva que se infiltrava pelas soleiras, a chuva que os especialistas diziam se aproximar e que nunca chegava e até adiou a mudança e quando, enfim, apareceu, lavou aquele chão de folhas perdidas por onde você pisou para me descobrir, enquanto eu mesmo me deixava levar pelo bairro novo.  

Lembro quando aquelas cercanias eram uma tela em branco na minha cabeça, eu recém chegado e você se perguntando se eu poderia ser teu, se o bloco de carnaval poderia ser nosso, se o fim de semana poderia nos receber para mais uma das nossas sessões de descoberta mútua onde tudo se realçava a olhos curiosos.

Esperava, detrás da porta, a música dos teus passos, como quem se eleva do chão sem tocá-lo para não interferir na placidez do momento, eu que me perdia na adivinhação do segundo exato em que seria preenchido de um sentido mais concreto, de quando seria finalmente alvo dos raios solares do teu olho.  

Pois quando fui residir no bairro, não era para me abrigar; era para me abrir e ter uma companhia até as prateleiras da locadora de dvds; era para seguir de mãos dadas o caminho da loja de vinhos, alcançar, lado a lado contigo, o clarão dos balcões de padaria. Pois essa coisa de ter você depois ganhando o corredor, conquistando terreno entre os meus livros e, enfim, no mesmo sofá, comentando esta ou aquela cena de um filme, tomando café com croissant e broinhas de milho, era com o firme propósito de fazer surgir algum ambiente ainda não demarcado onde eu e você pudéssemos dar sentido a tudo o que viria nos envolver dali em diante, como dois desbravadores que dividem a mesma vontade de possuir o novo.

Foi tudo para você ganhar um cenário que te definisse, como se aquele balançar das copas das árvores altas viesse inteiro para te conter como num abraço e você estivesse chegando para se envolver nele, para se misturar e se confundir com as cores do bairro, aquelas cores translúcidas que me vêm tingindo até hoje, por cima da poeira, me preenchendo.

E aí você passou a existir junto com tudo aquilo, com todo aquele quadro delicadamente fundido às linhas recém-chegadas do teu rosto.

Mas se já nos fixamos, eu e você, em novas paisagens, com novos horizontes, cada retorno às sombras dos muros na direção da praça em rebuliço aos domingos, cada visão dos canteiros bem cuidados de terra úmida enfeitando as calçadas, te trazem inteira diante de mim exatamente como naquele primeiro olhar.