sexta-feira, 12 de abril de 2024

Crias chulas

 

    E pensar que está ali só para fazer um favor à filha, tomar conta dos três netos, muito a contragosto, a tarde inteira e um pedaço da noite. Lógico que diz a ela que está tudo sob controle, ao vê-la sair apressada para o trabalho avisando o de sempre, que ele pode ligar a qualquer hora, a porta se fecha.

    A algazarra, os deveres de casa por fazer, o assalto das mãos no ventilador, o mais tinhoso segura as hélices, zumbido de motor em desarranjo, logo o falatório, as celeumas, tudo irrita, as cotoveladas na guerra doméstica pelos controles do videogame, a cólera dos rivais, uma briga estúpida por espaço na frente da televisão, as vaias que se seguem aos fracassos dos bonecos na tela. A porrada come, agora não só no jogo, mas na sala tumultuada, ele puxa o cinto para dar uma lição nos fedelhos, segura a calça, o vento do couro só arranha as costas dos moleques em rebuliço em volta do avô, gargalhando de escárnio. Driblam em zigue-zague os seus passos lentos, sambam no piso. A fivela pesada gira fraca na mão de Seu Venâncio na busca dos corpos móveis que fogem e riem. Riem dele? As chicotadas no ar quase o fazem tombar cansado entre as estantes. A tontura chega, mas a mão é firme ao desprender da tomada o aparelho preto no rack, só uma tremedeira de leve.

    É delegado aposentado. Os netos deviam respeitar os quarenta anos de prática, de vida policial e de sapiência no trato com menor. Mas a filha, com certeza, devia também saber que ele não tem obrigação nenhuma de vir àquele apartamento sem elevador, os interruptores difíceis de encontrar, dois dias por semana, às vezes três, longe da casa onde mora, da praça, das amendoeiras, das suas caminhadas, a viagem de ônibus é fatigante, o chofer sem consideração pelos cabelos brancos, a filha não sabe que ele precisa alimentar os chupins baianos, instruir os papagaios, proteger as saíras? Pôr na sombra as gaiolas? Tantos remédios para tomar, tantos vizinhos necessitados de opinião, de palpites sobre as normas da rua, de pistas sobre os vagabundos da área.

    Esse caçula dos três é o que mais dá nos nervos de Seu Venâncio. Esquece o nome do neto. Qual é mesmo? Rogério. Rogerinho, para a mãe. Tem onze anos, ou dez, não faz diferença. No conforto da cadeira de balanço, Seu Venâncio quase dorme antes que o estrondo aconteça na cozinha. Um barulho feito trovoada. É Rogerinho que desaba em fragmentos de segundos depois de trepar na geladeira em busca do quadro de luz. Panelas, talheres, apetrechos culinários amontoados, um estorvo, dificultam a passagem. Sem energia no apartamento, no prédio?, mas o guri ligado, não se pode tirar a sesta perto dele. Tudo é escuro. O fogo salta e a frigideira domina a atenção. Sobe no skate, frita hambúrgueres para matar a fome que não desaparece nunca, não é possível que os biscoitos de saco não bastem. Mastiga feito uma fera, os alicates tombam pelo vidro da mesa, o mais velho e o do meio remendam fios, as lâmpadas acendem. Rostos curiosos espiando a tela novamente, filmes de sacanagem. Os irmãos batem, chutam, fazem tremer a porta do banheiro, mas o banho do caçula é o mais demorado de que se tem notícia.

    Seu Venâncio consegue um raro cochilo, põe-se a roncar, sonhos fugidios, e só abre os olhos ao intuir, pelo farfalhar de chave, a filha recém-chegada da emergência para onde Rogerinho fora levado. O neto traz o ar manso das salas de espera de hospital, deita-se no sofá, tira a bermuda, sem cueca por baixo, olha, meu curativo. O avô agora se lembra da gritaria no apartamento iluminado, lá dentro do banheiro a repetição ai, meu pau!, ai, meu pau!, o sangue a escorrer pelas pernas do menino. Os irmãos na baderna, a chacota, os xingamentos, as portas escancaradas, o corredor lá fora tomado de horror, os telefonemas. Um médico de adultos é o responsável pela costura do dano, de todo aquele carnaval insolente.

    A filha diz que é fimose, que os pontos são firmes e a dor controlada, que todo garoto passa por isso, foi assim com os outros, e que nada será dito na escola para não emocionar os professores, ao passo que Seu Venâncio puxa da lembrança as suas próprias agonias infantis, os seus deleites diante de graças misteriosas, as suas degustações, os seus desfrutes culpados. O nervoso do neto ao golpear o controle do videogame cada vez mais rápido, cada vez mais forte, ávido por obter o quanto antes alguma coisa prestes a aparecer na tela, umas moedas, um troféu jorrando confete, uns corpos ensanguentados depois da luta. Isso é bronha, isso só pode ser bronha, denuncia, ao movimento da cadeira de balanço, o dedo em riste, o vai e vem do braço acusador.

    Conclui que é bronha, só pode ser. Depois pega no sono de novo.