quinta-feira, 7 de novembro de 2024

O casamento de Josephina

   

Um bilhete.

Fui embora para ser feliz com o amor da minha vida.

Lágrimas embaçaram as palavras escritas à caneta, as letras se misturaram numa dança molhada de dor. O espanto atiçou tremores nas mãos de um pai atordoado. Puxou da lembrança os trejeitos do infeliz que se interessara por Josephina. O seu sotaque lusitano, as ferramentas de pedreiro numa sacola de couro que não vê luz, o jeito furtivo de vagabundo que não pega obra, sem modos. Os bolsos vazios, tão vazios como o bonde que levará esse pai à delegacia de polícia relatar a fuga.

Doze anos, a pequena. A rua inteira sabia. Meses de cochichos, rumores sobre os seus passos ariscos, boatos que pouco a pouco se comprovaram. Olha, Ernesta, vieram me contar que a Josephina está se interessando por um português de quarenta anos de triste fama, de navalha e carteado, de dívida de botequins. Não quero a desgraça da minha filha. Disse a ela que não e que não viesse me aborrecer, tantas sacas para embarcar, balanços a fazer, tantas cobranças nessa lida difícil de pequeno empório. Me ajude aqui a equipar as carroças.

Preguiça do delegado, outros casos mais urgentes na frente, a busca precisava ganhar logo as ruas, com ou sem diligências, na surdina, que seja. No encalço de sombras fugidias por rotas de penumbra, esse pai iria às muitas rinhas de galo do centro, aos cortiços mais abafados, lar de foragidos, aos trapiches aonde as cargas proibidas se negociam. Dobraria as esquinas mais infames, atalhos sórdidos. Ao Mangue, aos antros do Mangue. É para lá que fora levada, ele tinha certeza. Baseado em quê? Não se sabe. Apenas o faro de um pai inquirindo os passantes nas calçadas sujas.  

A notícia correu, vizinhos se movimentaram, fregueses de confiança trouxeram informes valiosos. Um endereço foi citado na discrição de uma tarde, tomou-se nota. Vultos que correspondiam ao que se falou dos suspeitos. As pegadas dos dois foram seguidas por confins de terra batida, rincões tortuosos em beiras de rio. Avistou a casa de telhas jeitosas, uma casa suburbana amparada pela imagem de São Sebastião no alto de um alpendre, os cachorros em alerta, à cata dos pés que entraram pela porta depois de esfregar com força o tapete, muita lama. Esse pai se apresentou às pessoas ali sentadas entre almofadas, o senhor de chapéu em mãos, sua esposa de vestido rotineiro e os cinco filhos de diferentes idades e fisionomias, expressões modestas. Foram servidos café e bolo de milho. Nenhum daqueles portugueses presta, exclamou esse pai. Sou italiano e não tenho nos meus planos casar uma filha com um pedreiro que não pega obra. Ouviu então que, sim, ela se encontrava na casa dos fundos e não queria vê-lo. O português na rinha de galo e a menina reclusa feito pássaro engaiolado. São essas as paredes que ele ergue?

De volta aos secos e molhados, aos labores cotidianos, os frontais por pintar, os galhos descaídos, as fiações, Ernesta, eles querem a união e rogam pela minha assinatura, doze anos tem o nosso anjo. Invoco a justiça para impedir uma tragédia, a perdição de uma inocente. Aos tribunais. Vamos aos tribunais. O trabalho só vem quando faz sol ou quando os galos ficam doentes? Que imigrante é esse, Ernesta?

Josephina agora com treze anos, toda a pulsação de um tempo não celebrado, a recusa de qualquer festejo, sem sopro e sem velas. Notícias frescas na voz de conhecidos, vou falar o que é aquele lugar onde sua filha está morando. Aquela casa de fundos dorme de dia e desperta à noite, as portas para a rua de trás se abrem, o clarão vermelho chama, a compostura ali é suspensa, as vergonhas se exibem, entram olhos lascivos, a volúpia bem paga, recreio noturno remunerado ao som de música francesa, generosas somas. Aquela família da frente é quem recebe, alcoviteiros que contam as notas da malícia. E ela? E ela, nisso tudo? Esses informantes traziam o testemunho de alguém feliz, de alguém que sabe os dissabores de uma vida cortesã e ao mesmo tempo prometeu casar-se, alguém que anseia pela garantia do papel passado e de um futuro protegido, conjugal, em aliança de seres que se unem pela bonança e tranquilidade. O testemunho de alguém que só quer a aceitação e não o silêncio dos seus.

Numa manhã, a justiça, em sua frieza celestial, olhos de pedra e braços de madeira, requereu, clamou pela assinatura, a benção desse pai na certidão que lhe abriria passagem para o infortúnio dos santos homens e ele se apresentou. Dentro do corpo da justiça, o respirar dos saguões, a estatura dos ambientes, a grandeza sem fim dos espaços de sombra ao som dos escrivães. Os sapatos não tocavam o piso de mármore, a cadeira alta. Tremeu entre os rábulas. Alisou as costeletas, aprumou o terno, empunhou a caneta feito uma arma, o tiro de misericórdia, o rabiscar largo de um danado, rubricou folhas, agasalhou-se e ganhou a rua para ir, cabisbaixo, orquestrar o empório.