quinta-feira, 5 de junho de 2025

Sete casas

 



Diziam que era artista. Sempre com um violão nas costas, livro debaixo do braço, barba grisalha muito comprida, óculos escuros e uma túnica escura toda bordada, mangas compridas, mesmo num calor de quarenta graus. Subia e descia a rua Quaraim carregando um olhar que atravessava as pessoas, como se lesse o que vinha depois delas. Qual morador de Piedade nunca tinha avistado o artista, nem que por um segundo? Primeiro chegava o bafo do incenso, depois ele surgia, sem pressa nem sorrisos, na mansidão de andarilho solitário, entrando pelo portão, vindo sabe-se lá de onde. Espalhou-se tanto a fama dele que as crianças corriam para a calçada oposta quando passavam em frente à casa de muro baixo, quintal sujo de folhas descaídas e varanda ornada por guirlandas místicas, sóis, luas e figuras tenebrosas de aspecto humano e animalesco. Podia ser perigoso, alertavam. Sons exóticos eram ouvidos à noite, como se a casa gemesse uma guitarra distorcida e estourasse por dentro, mas com ritmo. Atrás de grades de metal trabalhado, aquelas eram as únicas janelas no quarteirão inteiro que não recebiam decorações nas festas de Natal e Ano-Novo.

Darley não tinha a intenção de se aproximar da casa. Mas um imprevisto aconteceu e o acaso, ou o que quer que fosse, encontrou uma brecha. Seu gato – o único companheiro desde a mudança para a rua Quaraim – desapareceu uma tarde. Deve ter pulado o muro para explorar o novo território, mas até aquela hora não havia voltado das aventuras. Os pais sugeriram espiar debaixo dos carros estacionados, nas caçambas de lixo, no beco cheio de mato que dava para a Bento Lima e, claro, perguntar aos vizinhos. Por horas Darley procurou o gato e, ao passar pela casa do artista, algo o fez estancar o passo. Na varanda, o felino descansava, a preguiça de sempre, tranquilo, lambendo as patas. Antes que pudesse chamá-lo, a porta da frente se abriu com um rangido brusco, revelando o vulto do morador, que não disse nada. O animal entrou correndo, sem hesitar, e desapareceu lá dentro. Darley e o artista foram atrás. A porta se fechou com uma ventania repentina.

Havia medo, evidentemente. Quando se tem treze anos e ainda se fala com voz de criança, é de se temer muita coisa. Não aquele medo teatral, de filmes ruins, mas um medo verdadeiro: manifestado quando se cruza uma linha invisível entre fantasia e realidade. E havia os boatos. O sujeito seria adepto de artes sinistras, de costumes nirvânicos, de práticas alucinógenas... Os boatos talvez existam como uma espécie de acúmulo, como uma espécie de nuvem pesada sobre nós que, em vez de esconder, ao contrário, concentra verdades demais, tudo no mesmo ponto. E esse ponto no caso era a sala esfumaçada do artista. Ali estava ele, no lugar mais evitado da rua, sobre o qual se falava sussurrando para não despertar vibrações negativas.

No começo, desequilibrou-se e achou enjoativo o aroma das ervas queimadas no incensário de madeira. Depois, reassumiu o prumo e a constância dos sentidos, já sentado, bebendo água num sofá velho de couro, a convite do anfitrião. O som que saía das caixas era denso, grave, feito para sacudir os ossos – melodias com dissonâncias severas que bem podiam espreitar o limite da sanidade. Abajures pálidos lançavam luz vermelha sobre mapas estendidos em uma escrivaninha. Máscaras de baile, violões, guitarras de diferentes marcas, um banjo, uma lira e o que parecia ser um alaúde ou outra peça medieval ocupavam as paredes. Era um verdadeiro músico. Fitas e mais fitas se espalhavam pelo chão entapetado. Algumas dessas gravações ostentavam capas que eram verdadeiras obras de arte, imagens saídas de possíveis pesadelos psicodélicos: confetes prateados em nuvens escuras, portais suntuosos, orgias bestiais... Na certa, também pintava. Conseguiu ler os títulos: Tramas Mentais (versão V), Carnaval Dark (versão X), Rituais (faixas testadas)... O artista contou que havia composto cada uma das peças musicais ali presentes. Darley aguçou os ouvidos, o som ricocheteou dentro dele. O baque sonoro era altíssimo, em último volume, jorrando angústia e potência. O fluxo das notas em rebelião não era disperso, mas conforme, disposto num arranjo metódico e brilhante.

– O que está tocando também é composição sua? – quis saber, ao passo que o artista fez que sim com a cabeça e acrescentou:

– Minha e de uns amigos aqui de Piedade. Considero mais como pesquisas sonoras do que como obras finais. Algo está sendo trabalhado com esses sons, percebe? Chegaremos aonde queremos chegar, mas ainda não é o momento. Quer mais água gelada?

Darley aceitou outro copo, a sede era grande. Enquanto descansava da procura pelo gato, percebeu que havia outros na casa. Estavam reunidos de conversa com o seu e eram admiráveis os diálogos corporais dos bichanos no recinto de poucas saídas e retratos espalhados que também pareciam assistir, de longe, ao farejar mútuo dos animais. Uma dessas fotos chamou a atenção. Antiga, em um porta-retratos sobre uma pilha de livros de grossas lombadas. Uma criança – ele mesmo – em frente a um muro de pedras, segurando a mão de alguém que a luz do tempo havia borrado. Não podia ser. No pescoço do garoto, um colar com um pingente em forma de estrela de sete pontas – pequeno, mas nitidamente metálico, com as arestas afiadas como garras. Nunca tivera um colar assim. Nunca, até onde lembrava. Sentiu o estômago virar. Impossível. Aquilo não existia.  

– Você não se lembra mesmo, né? – disse o artista, com uma voz baixa, quase satisfeita, como se estivesse cumprindo um desígnio maior, com uma paciência que ultrapassava a lógica. Darley era empurrado de volta para um lugar anterior à memória. O artista queria algo dele? Notou a atenção que o homem prestava na sua voz, na música das palavras nervosas que conseguia escolher.

Encarou então a fotografia por mais tempo que gostaria e reparou agora que havia outras pessoas na imagem, apoiadas no tal muro, acinzentado. A pose era séria, de quem tem altos propósitos. Pessoas importantes? O pensamento foi longe. Não se lembrava de nada. Mas o muro talvez fosse familiar. Sim, aquele muro antigo de pedras justapostas ficava na rua Virgem Peregrina, perto da locadora. Ele crescera por aqueles lados do bairro. Passava por ali todos os dias. Era o muro da casa da dona Orlandina, uma professora de música que costumava tocar a sua flauta transversa na varanda para os cachorros uivarem, tão agudas eram as notas. Quebrava silêncios feito uma profissional. Darley não se conteve com a recordação e deixou escapar um sorriso. Ela era uma das pessoas na foto, tinha certeza.  

– Ela faz parte disso? Está trabalhando os sons com você? – perguntou.

– Eu, ela e mais cinco. Somos sete músicos em busca de algo ainda não consumado – respondeu o artista, observando-o com interesse. – A natureza dos outros é algo que se pode ouvir, acredita? Posso perceber a sua. Algo está se criando, algo que mais ninguém tem. Aos poucos. E quando estiver inteiro, a música também vai estar.

Recuando um passo, Darley não tirou os olhos do porta-retratos. Um zumbido fino atravessou o ambiente, vindo de lugar nenhum – talvez da caixa de som, talvez de dentro da cabeça dele. À medida em que fixava as vistas, algo na foto mudava. A criança parecia estar encorpando. Lentamente. Até ganhar a altura dos outros. Como uma lembrança que, em vez de surgir na mente, emergia no mundo físico. Aquilo era só papel, queria crer. Só uma imagem. As certezas se desfaziam enquanto o artista também se punha calado, olhos presos na cena antiga à sua frente, como se esperasse por algo há muito tempo previsto.

Darley tinha que perguntar de onde viera a foto, como ele o conhecia, quem eram as outras figuras. Mas a garganta apertou, um engasgo, um sufoco cresceu nele. A voz saiu, enfim. Uma nova, não mais infantil. Era grave, destacada. Reverberou em harmonia com a música.

– Os lugares estão guardados – disse o artista. – Faltava você.

Os gatos agora corriam pela sala, em frenesi repentino. O zumbido se tornava nota, a nota virava acorde – único, irreal. Um acorde alongado, feito o início de uma música que ninguém ousava tocar inteira. E Darley entendeu, sem saber como: aquela casa não era um lugar qualquer. Era uma fronteira. E o artista... não era só artista. Era sentinela.

Não sabe quanto tempo passou, mas foi o suficiente para ouvir o que cada uma das personagens da foto representava. Sete quarteirões. Sete casas. Sete músicos que perpetuam o segredo. O artista, na frente dele, era o perito da guitarra e protegia o alto da Quaraim, sua morada. Na rua Virgem Peregrina, outra quadra, a dona Orlandina continuava de vigília, a flauta em mãos. Quem resguardava o quarteirão de cima, pelas bandas da Antônio Vargas, ao dispor da iminente invocação, era um antropólogo de mais de quarenta anos e traços juvenis, barba feita, devotado à bateria. Já na parte de baixo, que chega à rua Paranapiacaba, corria o domínio de uma gótica que nunca saía do quarto, que diziam doente até, nutrida pela consolação dos teclados desde menina. Aproximando-se da Padre Nóbrega, havia um casarão de três andares e azulejos portugueses que abrigava do sol o maior dos baixistas vivos, o dono do terraço. Na rua Ada, em frente à bomba de gasolina, um diretor de escola de samba que regia os sortilégios da percussão também se mantinha a postos, pronto para o chamado, afinando o repique. Por fim, completando as sete pontas da estrela, vivia de sobreaviso no quadrante que lhe fora concedido, lá na Teixeira de Pinho, aquela que detinha os esquemas das cordas líricas, uma sacerdotisa wicca agraciada com as manhas do violino.

Todo um pedaço do bairro reservado como um palco. Foram até a escrivaninha. Uma estrela perfeita no mapa suburbano. Cuidadosamente desenhada. Os nomes, as marcações das casas, os instrumentos. Os músicos mantinham caixas acústicas poderosas sempre ligadas, atrás das janelas.  

– Cada um de nós guarda um som, uma lasca do todo, um alicerce – explicou o artista, em palavras humanas, enquanto afinava uma guitarra, os olhos vidrados em algo muito além dos muros. – Cada timbre carrega uma nota impossível, herdada de um tempo em que os sons e os objetos que os produziam eram a mesma coisa. Quando tocarmos juntos, não será só música. Será travessia.

– Travessia para onde? – Darley indagou, finalmente.

O artista deu um sorriso que não chegava aos olhos:

– Depende de quem estiver ouvindo. Alguns vão para o que vem depois. Outros... não voltam.

Contou que os instrumentistas aguardavam a ocasião propícia ao ritual – o instante em que as sete notas convergiriam. E quando tocassem juntos, quando a sinfonia chegasse ao mundo pelos alto-falantes depois de longa gestação, o bairro de Piedade inteiro seria tragado para sabe-se lá onde, para dentro daqueles sons incomensuráveis que ecoariam além do tempo terreno. Disse que Darley estava ali por essa razão. Não foi por acaso. Ele fora convocado porque faltava uma oitava nota. Um elo que resolveria a dissonância, que selaria a partitura. E essa nota não viria de corda ou sopro, mas de uma voz – a dele. A voz que acabara de despontar, que agora assumia o timbre perfeito, era o elemento final. Não seria ouvinte, mas vocalista. O último acorde era um grito, um canto inigualável que só ele poderia entoar. A obra rogava pelas palavras quiméricas que dormiam em sua garganta desde que era só uma criança correndo por ruas e ladeiras.

E naquela noite, enquanto os sete músicos subiam o volume das caixas acústicas até não poder mais e as lâmpadas piscavam, enquanto o ar vibrava com o prenúncio do som impossível e as varandas tremiam, ele soube: não havia mais retorno.